Adoro descrições de comida. Espero que você, que me lê, se identifique com essa sensação: pra mim, a escrita de belos detalhes sobre uma refeição pode ser tão saborosa quanto devorar o prato em si. 💭
Um parêntese pessoal, relacionado ao tema: nesse final de semana, em São Paulo, me peguei aguardando 16 mesas pra entrar num desses restaurantes clássicos do bairro Liberdade. Pra distrair, eu e meus companheiros de espera da prometida mesa nos pegamos revezando turnos de leitura do cardápio do restaurante, mesmo já tendo decidido nossos pratos na primeira olhada. 😅 É que a lista de palavras — tempurá, missoshiro, gyoza, curry… — já era suficiente pra fazer a imaginação voar. Enfim. Jeitos saborosos de tapear a fome. 🍣
Fome de vida
Foi por gostar desse tema na escrita que comecei a seguir o perfil @whatsylviaate no Twitter, o Sylvia Plath’s Food Diary / Diário de Comida da Sylvia Plath. Nele, estão reunidas as mais variadas citações de comidas, bebidas, jantares, refeições que fizeram parte do dia a dia da autora. 🦪
Li uma entrevista com a curadora do perfil, Rebecca Brill. Ela conta que quis selecionar essas passagens pra criar um contraponto à associação que é feita, superficialmente, da Sylvia Plath com a morbidez, a tristeza, e a depressão. Apesar de sabermos que a história da escritora se delineia por questões delicadas, sua obra não se resume à tragédia. É esse o ponto que a Rebecca quer trazer:
“Nos trechos de comida do diário, Sylvia está muito, muito viva — cozinhando e comendo refeições de vários pratos que parecem insanas no fogão único de seu dormitório em Cambridge, reclamando da comida da mãe de Ted, embebedando-se com Manhattans em uma festa de fraternidade, terminando com homens enquanto comem pizza, devorando frango frito e biscoitos em um acampamento, etc.” 🥨
As passagens reunidas no perfil tem relatos de sonhos com comida, anotações sobre desejos alimentares, companhias que acompanharam ela nas refeições e muito mais. Dá pra remontar uma vida toda com esses detalhes. Vale a pena se distrair lendo. Afinal…
Alimentada
Gosto de pensar nesse olhar feminino sobre as refeições. Essa lente se destacou pra mim depois de uma passagem do ensaio Um Teto Todo Seu, da Virgínia Woolf. Ela, questionadora, diz:
“É curioso que os romancistas nos façam acreditar que os almoços são invariavelmente memoráveis por algum dito espirituoso ou algum feito muito sábio. Mas eles mal dizem uma palavra sobre o que se comeu. Faz parte de seu costume não mencionar a sopa e salmão e pato, como se a sopa e o salmão e o pato não tivessem importância, como se ninguém fumasse um charuto ou tomasse uma taça de vinho.” 🍷
É um anúncio que posiciona a descrição que vem na sequência, narrando um jantar com os colegas da universidade. Com isso, Virgínia consegue desenhar essa sensação de comunhão das refeições compartilhadas de um jeito iluminado. Deixo essa passagem e esse sentimento aqui:
“Aqui, contudo, tomarei a liberdade de desafiar esse costume e contar a vocês que o almoço naquela ocasião iniciou-se com linguado — afundado em uma travessa —, sobre o qual o cozinheiro da universidade espalhou uma camada de um creme muito branco, a não ser pelas manchas marrons que o maculavam aqui e ali como as pintas nos flancos de uma corça. (…) Nesse meio-tempo as taças de vinho jorravam amarelo e jorravam carmim; foram esvaziadas; foram completadas. E assim, aos poucos, acendeu-se no meio da espinha, a base da alma, não aquela luz elétrica rígida que denominamos inteligência, que entra e sai dos lábios, mas o brilho mais profundo, sutil e subterrâneo que é a forte chama da comunicação racional. (…) Como a vida parecia boa, como eram doces suas recompensas, como pareciam triviais esta rixa ou aquela mágoa e admiráveis a amizade e as companhias enquanto, acendendo, um bom cigarro, nós nos afundávamos entre as almofadas do sofá sob a janela.” 🛋
Banquete
Escolhi frames de Daisies, filme de 1966 dirigido pela Věra Chytilová, pra ilustrar essa edição sobre o paladar. Parte do movimento do cinema novo tcheco, ele é um exercício de criatividade emancipador. É sobre amizade, feminilidade e indulgência. As personagens perseguem jantares, fazem guerras de comida e bebem. Tem pra assistir na Mubi. 🌼
Pra quem é de Belo Horizonte, tem outro filme da Věra e mais do cinema da Checoslováquia em exibição até o dia 31 no Cine Humberto Mauro, na mostra Devětsil – Uma vanguarda tcheca. Imperdível. 🎥
Cardápio
🍝 Estou aproveitando o tema da edição e usando minha licença poética pra indicar minhas receitas preferidas da Rita Lobo: Espaguete à carbonara e o Tartine de queijo grelhado com pera cozida. O macarrão à carbonara, por sinal, merecia uma edição dedicada só pra ele. Quem sabe em breve.
🍔 MF DOOM não sai dos meus fones faz tempo e essa é uma ótima oportunidade pra falar do “MM…FOOD”, disco do rapper de 2004. As faixas todas trazem trocadilhos com comidas e são embaladas pelos melhores samples e as rimas irreverentes do Doom. Boa companhia pra rotina.
🥤 Assisti esse mês em Beagá o show do Pelados, banda de São Paulo. Já era ouvinte e fã do álbum “Foi Mal” deles, lançado ano passado, e a apresentação ao vivo foi cativante. No tema da vez, a canção coquinha gelada after sex evoca sentimentos.
Depois de um breve hiato, tô de volta! Indique essa edição pra alguém que pode gostar dos temas, isso ajuda a newsletter a chegar em mais pessoas. 🍇
Gostou do tema? Deu fome? Me conta o que achou! 🍳